O Brasil, apesar de seu potencial agrícola e industrial, ainda é fortemente dependente da importação de insumos farmacêuticos ativos (IFAs) derivados da Cannabis para atender à crescente demanda por medicamentos à base de canabinoides. Essa dependência, além de afetar diretamente os custos de produção do setor farmacêutico nacional, compromete a previsibilidade do fornecimento, enfraquece a capacidade de resposta do sistema de saúde e limita a autonomia do país no desenvolvimento de soluções terapêuticas baseadas em biotecnologia vegetal.
Em um cenário marcado pela elevação dos custos logísticos internacionais, variações cambiais constantes e uma judicialização crescente do acesso a tratamentos de saúde no Brasil, essa fragilidade se torna ainda mais crítica. A judicialização tem levado o Estado a adquirir medicamentos à base de Cannabis a preços elevados, muitas vezes em caráter emergencial, pressionando ainda mais os orçamentos públicos. Essa realidade compromete a sustentabilidade do SUS e dificulta a universalização do acesso tanto para pacientes quanto para os laboratórios que operam no país.
Considerando que parte desses medicamentos já está incorporada ao Sistema Único de Saúde em decorrência de decisões judiciais ou necessidades clínicas excepcionais, a dependência de importações torna-se também um problema fiscal. Produtos importados têm custos mais elevados, principalmente devido à logística internacional, taxas alfandegárias e oscilações cambiais. A consequência é um impacto significativo sobre os cofres públicos e, ao mesmo tempo, uma barreira para a ampliação do acesso à população em situação de vulnerabilidade.
Neste contexto, a verticalização da cadeia produtiva da cannabis medicinal — que compreende o cultivo regulamentado, a extração, purificação, padronização e produção dos IFAs em território nacional — representa uma oportunidade concreta e estratégica para o Brasil. A construção de uma cadeia nacional e integrada tem o potencial de reduzir significativamente os custos para laboratórios, distribuidores e governo, além de permitir ganhos em escala, previsibilidade na oferta, segurança sanitária e independência tecnológica.
A verticalização também cria um ambiente fértil para a inovação tecnológica, atração de investimentos e formação de um ecossistema produtivo focado em biotecnologia vegetal. Com incentivos adequados, o Brasil pode se posicionar como um polo regional de referência em pesquisa e produção de IFAs vegetais, contribuindo para a reindustrialização do país com foco em cadeias de valor mais sustentáveis e sofisticadas.
Para que esse potencial se realize, é imprescindível a criação de dispositivos legais e regulatórios que permitam o cultivo em território nacional com finalidades farmacêuticas e industriais, baseados em critérios técnicos, sanitários e ambientais robustos. Um marco regulatório claro, estável e alinhado com as melhores práticas internacionais é condição fundamental para viabilizar uma cadeia produtiva sólida, segura e competitiva. Sem esse arcabouço, o Brasil permanecerá fora da rota da inovação global no campo dos canabinoides medicinais, desperdiçando uma janela de oportunidade estratégica.
Vale destacar que, no campo da Cannabis medicinal, o foco regulatório e estratégico não deve se restringir apenas à produção de produtos acabados. A etapa crítica e mais estratégica está na produção local dos insumos farmacêuticos ativos. IFAs produzidos com qualidade, padronização, rastreabilidade e conformidade com padrões internacionais não apenas suprem o mercado interno, como também abrem portas para exportação, parcerias em pesquisa clínica e o desenvolvimento de novas formulações terapêuticas, ampliando o papel do Brasil no cenário internacional da saúde.
A experiência internacional reforça esse caminho. Diversos países da América Latina e outras regiões já avançaram significativamente na construção de modelos regulatórios e produtivos. A Colômbia, por exemplo, desenvolveu uma legislação que permite a produção e exportação de derivados de Cannabis com alto valor agregado, posicionando-se como uma das maiores fornecedoras globais de IFAs. O Uruguai, pioneiro na regulamentação da Cannabis, estruturou uma cadeia verticalizada com foco em pesquisa e desenvolvimento. Israel se tornou referência mundial em P&D e integração regulatória, combinando ciência, indústria e marcos regulatórios de forma exemplar. Já o Canadá consolidou uma indústria robusta e tecnológica, com grande atratividade para investidores institucionais, baseando-se em regras claras, segurança jurídica e incentivos governamentais.
O Brasil, por sua vez, possui uma combinação de fatores que o tornam altamente competitivo nesse setor: clima favorável para o cultivo, tradição agrícola, base industrial instalada e um parque farmoquímico que começa a ser reativado dentro de uma estratégia de soberania sanitária. Além disso, o país conta com centros de pesquisa, universidades e profissionais qualificados capazes de integrar conhecimento científico e inovação tecnológica.
No entanto, para que esses atributos se convertam em vantagens concretas, é necessário superar obstáculos importantes. A insegurança jurídica, a lentidão nos processos de autorização para pesquisa e cultivo, a ausência de incentivos fiscais e linhas de financiamento específicas para P&D, além da fragmentação entre os órgãos reguladores, universidades e setor produtivo, são desafios que precisam ser enfrentados com prioridade. A criação de uma política nacional coordenada e transversal é essencial para transformar a Cannabis medicinal em uma agenda estratégica de Estado, não apenas de governo.
Somam-se a esses desafios questões de natureza jurídica mais ampla, que envolvem a ausência de um marco legal específico e a dispersão normativa sobre o tema. A inexistência de regras claras e harmônicas entre os entes federativos e os diversos órgãos públicos competentes gera insegurança para investidores e atores da cadeia produtiva, dificultando o planejamento de longo prazo. Esse ambiente instável limita o avanço de projetos sérios e afasta oportunidades de desenvolvimento econômico e tecnológico.
Além disso, ainda persiste, em parte do debate público e institucional, uma confusão entre o uso medicinal da Cannabis e seu uso ilícito. Essa associação, muitas vezes alimentada por estigmas históricos ou visões ideológicas, tem retardado o amadurecimento de políticas públicas baseadas em evidências científicas e sanitárias. Desvincular o campo da Cannabis medicinal de preconceitos e abordagens punitivistas é condição essencial para que o país trate o tema com a seriedade, o rigor técnico e a visão estratégica que ele exige.
A verticalização da cadeia também deve ocorrer dentro dos mais altos padrões de qualidade e conformidade. A adoção de boas práticas agrícolas e de fabricação (BPA e BPF), o controle analítico rigoroso e a rastreabilidade total dos processos são exigências legais e, ao mesmo tempo, diferenciais competitivos. Esses elementos são fundamentais para garantir a segurança do paciente, a confiança dos profissionais de saúde e a inserção do Brasil no mercado global de IFAs vegetais.
Mais do que um debate restrito a nichos ideológicos ou interesses setoriais, a cadeia da Cannabis medicinal representa uma frente estratégica de desenvolvimento econômico, social e sanitário. Trata-se de um setor com alto valor agregado, grande potencial de geração de empregos qualificados e impactos transversais sobre a economia da saúde, a inovação científica e a reindustrialização verde do país.
O Brasil tem, portanto, uma oportunidade histórica de liderar um movimento de reindustrialização inteligente, baseado em ciência, tecnologia, sustentabilidade e soberania sanitária. Estruturar uma cadeia nacional de produção de IFAs vegetais derivados da Cannabis não significa apenas acessar um novo mercado. Trata-se de qualificar a base industrial, reduzir a dependência externa, garantir o acesso seguro e econômico à população e, sobretudo, posicionar o Brasil como um protagonista relevante e competitivo em uma indústria que já movimenta bilhões e cresce a taxas expressivas ano após ano.

